terça-feira, 20 de outubro de 2009

A vida ensaiada

Era sereno e secreto. Exalava um perfume amadeirado, um andar desajeitado e um coração quebrantado. O mistério mais profundo de alguém é aquele o qual não conseguimos desvendar por mais profundo que seja o nosso olhar ao seu interior. Era dono de uma face neutra, sem expressões extremas, mas possuía um baú de sentimentos completamente dotados de uma vontade plena de saltar aqueles impedimentos e ser apresentados em público.Ainda assim, seus pulsares ao adentrar aquele ambiente com a acústica perfeita e com um piso que ecoava o som das solas de suas botas surradas pelo tempo, eram audíveis em uma melodia uníssona. Foi ali o lugar do seu primeiro sorriso completo. Aquela cortina vermelha era o único obstáculo entre ele e as pessoas que gostaria de retirar. Os degrais, sua única forma de sentir-se alto e visível. Já o palco, ah o palco! O palco era seu habitat natural, a fonte da sua vitalidade e o único lugar onde poderia ter qualquer personalidade, vestir-se de qualquer caráter, assumir qualquer postura e errar, acertar, sorrir ou chorar sem sofrer de verdade. Era ali em que vivia a vida que mesmo traçava, tomava as próprias decisões e escolhia as consequências para cada escolha feita. O público era seu melhor amigo. Por mais desconhecido ou não, era o único que lhe assistia por estar interessado na sua atuação de forma verdadeira e que lhe julgava só após de ter conhecido o desfecho, não pelo início.

Foi assim que decidiu que nada o arrancaria dali e que nos próximos minutos, sentaria à beira do tablado, olharia ao horizonte finito das poltronas e criaria sua vida. Deixaria que suas pálpebras fizessem o plano de fundo de sua peça. Imaginaria um musical no qual seus atores são todos os protagonistas de sua vida e cada cena teria um final feliz. A trilha sonora seria de um compositor desconhecido e o figurino não importava. Teria um maestro invisível com uma batuta regendo uma orquestra estrondosa que geraria um ultrassom fascinante, por mais inaudível que fosse. O que valia era agradar a platéia, composta de inúmeros eles. Por fim, o maestro lhe entregaria um relógio, dizendo que as horas haviam parado e que o tempo seria contado pelas batidas do seu coração de forma inversa. Quando acelerasse de emoção, tudo seguiria mais devagar para ser melhor aproveitado. E esse seria o desfecho, uma multidão inexistente aplaudindo-o de pé por um tempo infindável.

Um comentário:

  1. Bati os olhos no seu texto, antes mesmo de ver seu comentário no Mar de Garoa, e percebi a relação estreita com "Arte-Retrato"... Absurdamente semelhante, embora o meu texto seja composto de somente quatro versos... Incrivelmente conexo, palpável e poético... Um texto lindo Evy!

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